Quinta edição, o velho e o novo

D&D 5e

O recém-chegado

Para quem não acompanha o disse-me-disse online, eis aí a quinta edição do D&D, legalmente grátis para baixar, imprimir e jogar. A versão é preliminar mas existem atualuzações previstas para torná-la um jogo completo. Grande jogada da Wizards of the Coast, que está de parabéns pela iniciativa.

Uma leitura superficial sugere que é bem parecida com a terceira edição, para o desapontamento geral dos fãs das edições antigas aos quais a Wizards of the Coast havia prometido uma edição com sensibilidades mais clássicas.

A terceira foi a grande rotura na história do D&D. Foi a primeira edição após a falência da sua editora original, a TSR, e a primeira sob os augúrios da atual, a Wizards of the Coast. Monte Cook (que começou a carreira escrevendo suplementos para Rolemaster), Jonathan Tweet (autor do Ars Magica e co-fundador da White Wolf) e Skip Williams (responsável pelo “Sage Advice”, uma coluna para leitores que tinham dúvidas sobre regras na velha revista Dragon da TSR, e um dos jogadores da campanha do Castle Greyhawk, do Gary Gygax, uma de duas campanhas que originou o D&D) se reuniram e trabalharam na mais extensa revisão de regras pela qual o jogo já passou.

D&D 3e

Onde (quase) tudo mudou

Entre as muitas mudanças promovidas pela terceira edição, gostaria de olhar algumas, e refletir como elas mudaram o jogo. Entender o impacto destas mudanças é entender por que alguns de nós preferem as edições antigas e os novos jogos que elas inspiraram, em detrimento das edições oficiais posteriores.

A introdução de uma mecânica de resolução unificada (1d20 + modificadores vs. classe de dificuldade). D&D sempre usou toda a variedade de dados poliédricos. 1d6 para surpresa e portas secretas, 1d100 para habilidades de ladrão, 1d20 para ataque, e para dano qualquer coisa que o mestre julgasse procedente, do 1d3 ao 4d12+6. Nunca antes se definiu uma mecânica “universal” que cobrisse situações não explicitamente previstas no livro; esperava-se que o mestre-do-jogo fizesse um tirocínio imediato e improvisasse a regra que bem entendesse.

A inconsistência de decisões entre diferentes mestres, ou mesmo entre diferentes sessões com o mesmo mestre, provavelmente era uma queixa entre muitos grupos e jogadores desde que Runequest (1978) introduziu uma mecânica de resolução unificada. O seu excelente sistema, rebatizado como Basic Role-Playing ou BRP, iria servir de base para outros RPGs de sucesso como Stormbringer (1981) e Call of Cthulhu (1982).

Uma mecânica única facilita a vida do mestre? Menos do que se imagina. O uso freqüente de modificadores circunstanciais ou números-alvo, em que o mestre decide algo como “teste a sua perícia contra Classe de Dificuldade 20” ou “rola 1d100 com -15% no valor da sua habilidade” não destoa em nada de juízos familiares aos jogadores de edições antigas, como “tira 1 aí nesse 1d12” — em todos os casos, o mestre está definindo a dificuldade da tarefa e decidindo qual é a chance de sucesso. É exatamente a mesma operação mental.

A outra grande mudança foi o sistema de Feats, traduzidas em português como “Talentos” — creio que “feitos” ou “façanhas” ou “proezas” seriam termos melhores. Assim como o sistema de “classes de prestígio” (Prestige Classes), o objetivo provavelmente era oferecer recompensas mecânicas (bônus) em determinadas tarefas, estimulando os jogadores a construir personagens distintos uns dos outros — distinguindo, por exemplo, um guerreiro com armadura leve e uma arma em cada mão, com Destreza alta e que se vale de velocidade e mobilidade, de um outro guerreiro com espada, escudo e armadura pesada, que “estaciona” na linha de frente e protege o resto do grupo.

WoW old school spec tree

Nem o World of Warcraft usa mais essa desgraça

A minha oposição às Feats não é ao conceito, e sim à implementação. Para “montar” ou “construir” o personagem que se deseja, é necessário planejar Feat por Feat e nível por nível. Não basta dizer “meu guerreiro é um duelista ágil” — tem que pegar as Feats certas, sei lá quantos níveis em Guerreiro e outros tantos em Ladino, e se qualificar para a prestige class Duelista Ágil ou coisa parecida. Um passo em falso e o esquema vai abaixo.

A acreção de complexidade mecânica à criação e avanço do personagem, bem como ao combate, tornaram essas duas coisas o centro das atenções do D&D moderno, em detrimento dos desafios mais cerebrais de exploração, subterfúgio, engenhosidade e caça ao tesouro — que eram tão ou mais importantes do que o combate no D&D clássico (especialmente em níveis baixos, nos quais qualquer combate pode ser letal).

Em torno dos fóruns online e dos grupos de jogo cresceu uma cultura de “corrida armamentista” que valorizava criar e desenvolver os personagens para serem, antes de tudo, eficazes em combate. Essa cultura foi decisiva na criação da quarta edição, ainda mais focada em combate que a terceira; mas o relativo insucesso da quarta edição levou os responsáveis atuais pelo D&D de volta à prancheta, bem antes do previsto.

Novamente, me sinto obrigado a esclarecer que esse texto é uma declaração de preferências. Jogo e aprecio jogar edições mais novas, mesmo preferindo as antigas (e os jogos modernos delas derivadas, através da old school renaissance ou OSR). Mas tenho prazer em debater — gosto não se discute, mas articular preferências e pontos de vista, sem a pretensão de catequizar ou diminuir o interlocutor, me ensinou muita coisa. E jogos, como qualquer invenção humana, são melhores aproveitados quanto melhor entendemos seu funcionamento.

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